Tuesday, December 20, 2005

O (I)RISÓRIO DE SANTORINI

Perdoar-me-á o leitor convocar para a cena politica um pequeno saber que só na aparência é anatómico.

Para vossa informação, aos que agora me lêem, Santorini descreveu com o nome de Risorius novus, um pequeno músculo, em geral extremamente fino, que está situado de ambos os lados da face. Ficou mais tarde conhecido em Anatomia Humana como risório de Santorini, em homenagem àquele que o descreveu.

O risório (de riso é claro) origina-se no tecido celular que cobre as parótidas e, às vezes, estende-se até ao esternocleidomastoideo. Aquele músculo do famoso filme do Vasco Santana, quando três professores deliciosamente caricaturizados se olham atónicos, quando o “Vasquinho” responde e bem. Dizem em uníssono, num tom que nos faz rir a todos (“ele até sabe o que é o esternocleidomastoideo”). E vai daí deram-lhe nota máxima e as tias da província ficaram deliciadas, arrependidas. Vasco Santana, que nos fez rir como poucos, tinha sem dúvida um excelente risório de Santorini.

Mas para onde vai o dito músculo? Para a comissura labial. Com três faces, a primeira corresponde à pele em toda a sua extensão. A segunda é profunda e insere-se nos músculos da face. A terceira vai até à parte cutânea do pescoço.

Inervado pelo nervo facial, a sua acção destina-se a fazer andar para trás a comissura labial. Quando os dois músculos homólogos se contraem juntos, o diâmetro transversal da boca aumenta, o que permite o sorriso.

O acto de sorrir (de rir) é então, imagine-se, exclusivamente humano, já que o risório é um músculo específico do Homem. Ou seja, a acção do humor, da necessidade humana do riso, como emoção única da nossa espécie, criou e é criada por esse pequeno músculo das nossas comissuras labiais.

Fácil é perceber que os outros grandes primatas não podem, nem sabem, e nem sabem para que é que serve o dito músculo. Vejam-nos no Jardim Zoológico e logo perceberão. Mostram os dentes quando abrem a boca e a expressão é, a mor das vezes, horrorosamente explícita (“cuidado que te mordo”).

A reflexão que deixo é pois da ordem seguinte. Rir não é só “o melhor remédio” como é também transformação anatómica dos músculos da face, para que o Homem, e só ele, possa rir, sorrir. Sorrir como no poema de Mário Cesariny. Para dizer ao “gerente/este leite está azedo”. Para que ao sair da pastelaria “cá fora rir de tudo”…

Para outros primatas, abrir a boca é convocação puramente agressiva. Para nós humanos e, muito particularmente hoje, para a cena politica nacional, rir e/ou sorrir é sinal de que somos gente, que sabemos utilizar o que a natureza nos dotou. Para sorrir face a uma criança, para nos mostrarmos sorridentes quando estamos entre amigos ou entre aqueles que amamos. E também para rir com uma boa piada, uma história picante contada noite adentro.

Face à evidência anatómica, deveríamos perguntarmo-nos em quem devemos votar nas próximas presidenciais. Nos que sabem sorrir e, por aí, naturalmente gostar, ou no(s) que só sabem usar a face para o esgar, esforço inglório para fazer passar uma mensagem, que aí mesmo precisava era mesmo de uma massagem facial, ou quiçá de uma massagem na alma constrangida. Por aí, para ser capaz de se mostrar, de se dar verdadeiramente ao outro.

Sugeriria para terminar (já que o dito músculo sendo só nosso, humano, falta com alguma frequência) que Santorini fosse convocado, se ainda se contasse entre os vivos, para aquilatar das potencialidades de riso, de sorriso e do humor dos actuais candidatos à Presidência da República.

E já que um outro, um Grande do pensamento, Sigmund Freud, afirmou que o humor é uma das provas mais seguras do equilíbrio emocional, vejam também por aí quem realmente querem em Belém. Um esgar (quase sempre obrigatoriamente sisudo) ou um sorriso. Uma alegria a que nos possamos identificar neste momento bisonho da História Lusitana.

NEM SE ESTRANHA NEM SE ENTRANHA

As declarações de Manuel Alegre a Maria Flor Pedroso, na Antena Um, provocaram um sem número de respostas na comunicação social. Quanto a nós, a mais relevante foi a de Carlos Magno. Estou tanto mais à vontade para o dizer, quanto com Magno me “encontro” semanalmente no programa “Alma Nostra” onde, muitas e muitas vezes, já publicamente discordámos. Em questões bem mais sérias, complexas.

Porém, para o agora e hoje, Carlos Magno criticou Alegre na sua quase hiperbólica entrevista, no dia 15 de Dezembro, às 12 horas, isto é, bem antes do resultado das sondagens, entretanto dadas a conhecer pelo “Expresso”. Dessa crítica enfatizo:

- Alegre “inchado pelas sondagens”. No espelho (um imaginário psicanalítico), o espelho travestiu-se em feira de espelhos e a imagem deformada sondou o candidato Manuel pelo seu lado mais alegre. Embora, como Freud afirma, só o real nos pode trazer a verdadeira satisfação.
- Carlos Magno dixit de novo. Sobre Alegre outra vez. Este teria “um Ego maior do que a sua própria ideia de Pátria”. Psicanaliticamente seria possível traduzir a leitura jornalística como uma confusão típica, mas complexa entre um Ideal do Eu (a Pátria) e o Eu Ideal (o Próprio).

Se Magno tiver razão, já que apenas o cito, então a Pátria Camoniana é uma vez mais o lugar do Espelho. Desta vez o da Branca de Neve, melhor, o que aparece no filme Branca de Neve e na respectiva história. A pergunta era a seguinte: “Espelho meu/há alguém mais bonita do que eu?” O que se pode traduzir para “quase” todas as virtudes, camoniana ou não.
- Carlos Magno por uma última vez. Enquanto Maria Flor Pedroso ia cuidadosa e gentilmente pondo questões, Alegre responderia mais ou menos o seguinte. Não estou aqui a ser interrogado como se fosse na Policia…,. Ou seja, e falando uma vez mais a partir da observação psicanalítica, se o Ideal do Eu obriga o Eu Ideal a ser maior do que ele, desvaloriza e ridiculariza o Super-Eu. Já que este, sendo e contendo a instância psíquica onde se localiza o conceito de autoridade (a Policia) é utilizado tão só como contra-argumento defensivo, mas não persuasivo. Efeito/sintoma do candidato a Belém, que ainda confunde os tempos em que foi interrogado pela Policia (pela PIDE salazarista) e os de hoje. Mas como também eu lá “malhei com os ossos” duas vezes, estou à vontade, a partir do comentário de Magno, para afirmar que a “lógica” da resposta só surpreende quem não quer ver o excesso de memória do passado, em Alegre.

Porém, “apanhado” pelas sondagens do passado fim-de-semana, Alegre já nem sequer consegue fazer ecoar a proposta pessoana para a publicidade à Coca-Cola em Portugal. Com Soares claramente à sua frente, o foguetório de acusações contra as sondagens já nem se estranha e muito menos se entranham. Ou seja, já não colam.

Lamento profundamente que assim seja, já que o poeta Alegre merece muito mais. O que ajudou a aprovar o famoso orçamento do queijo limiano terá sido sempre assim. Nós é que não o sabíamos.

SINTOMAS DE INDIVIDUAÇÃO NA E DA METRÓPOLE*

A minha posição perante a cultura contemporânea (na qual obviamente se inclui o tema deste colóquio sobre o urbanismo e a pós-modernidade), recorda-me sempre a de Humpty Dumpty do romance de Lewis Carrol “Alice do outro lado do espelho”. Sinto-me um pouco como ele em cima de um alto muro “tão estreito que Alice se perguntava como ele podia manter o equilíbrio”, instabilidade essa que é obviamente reforçada quando nos damos conta do formato oval do personagem. Mas não é do ovo de Colombo que se trata em Humpty Dumpty, embora algumas questões que ele mesmo levanta sobre a linguagem aí se pudessem inserir, sobretudo hoje, quando verificamos a tentativa abortada de apropriação do discurso crítico por um passadismo pseudo-cientifizante que encontra a sua hipérbole nalguns radicais sociologizantes, enrolados num discurso sobre as ciências, que de ciências têm pouco, de razão crítica ainda menos e de pretensão pós-paradigmática demasiada, ainda que se não saiba muito bem do que se trata quando se fala ou se escreve ou ainda se diz a propósito.

Tal como imagino Humpty Dumpty, inscrevo a letra mais sob o sinal da vertigem, abismo quase nietzschiano que se abra ao dialogo sobre a fronteira que é o próprio muro.

Bem provavelmente excessiva pretensão, essa de estar na fronteira, tal como Humpty Dumpty no seu muro estreito, permeável e simultaneamente impermeável à articulação das diferenças.
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* Conferência apresentada no Colóquio Metropolis in Postmodernity, 12 de Dezembro, 2003
Esses dois lugares do muro, que designaria por simplificação de modernidade e pós-modernidade, não me inclinam para um ou outro lado mas, na complexa procura do equilíbrio apenas me permitem traduzir, quiçá interpretar. Uma óbvia inferência é que este equilíbrio, sempre incerto me impõe, para a sua difícil manutenção, numa ordem Wittegnistiana, em o que deve ser calado fica, psicanaliticamente falando, na ordem de um não dito, ainda que este operacionalize paradoxalmente a procura do sentido.

Porém, no muro, instável e vertiginoso, Humpty Dumpty dialoga com Alice sobre as palavras, sobre o uso das palavras. Enquanto que para Alice a questão é a da demanda da polissemia do sentido, para Dumpty o problema é quem manda, ou seja, saber quem manda. De outra forma, e isso é o ponto essencial, o que emerge é o questionamento do poder e a apropriação da linguagem.

Questão curiosa esta, nos dias de hoje, em que a posição depressiva (ou seja, psicanaliticamente integrativa) do moderno, fundado é consabido na transformação industrial, pelo capital industrial e pela sociedade de consumo et por cause numa ideia do mundo centrada sobre o sujeito desejante (o que é capaz de produzir riqueza e obra), cede o seu passo à atomização esquizo-paranoide (psicanaliticante dispersiva), e em que, o fim das vanguardas, a fragmentação dos grupos, a “atomização da crítica”, parecem impor uma ordem do silêncio sobre o outro lado do muro, senão mesmo o silêncio puro e duro, ainda que como todos sabemos, haja mais coisas do que as que se supõem serem vistas por todos.

Entre estas, sublinharia desde logo o efeito da globalização sobre o planeta tal como o conhecemos, efeito esse que, é consabido, ultrapassa pela sua lógica aqueles que pela direita ou pela esquerda esperneiam na contemporaneidade, produzindo um efeito de paródia, a que Kiekegörd responderia convocando o real como a mais dura das categorias e Freud, em 1911, solicitando a escuta do principio da realidade, já que o principio da prazer apenas pode fornecer pela ilusão da fantasia, aquilo que a realidade pode, pelo menos em parte, conceder. Com sofrimento é certo, penosamente é sabido, mas essa é a condição irredutível do humano, falha gloriosa a que convém não escapar.

É portanto face à realidade e ao seu principio, que a questão urbana se coloca; num lugar, ou melhor no lugar mais nobre, já que sobre ele se convoca o olhar do sujeito cívico-o que anda, vive e ama no âmago urbano.

Não discutiria, pelo menos para já, a dessincronização simbólica da cidade como centro dos contextos culturais, seja pelo poder dos media, pela generalização da comunicação, pelas novas interacções relacionais resultantes da sociedade centrada no lar e no indivíduo, assente nas novas Polis (A Telepolis, a Cosmopolis ou a Tecnopolis). Faria apenas um apontamento de margem, tal como Dumpty, à intersecção entre o narcisismo emergente e a Ágora possível, pela globalização das culturas e, porque não dizê-lo do próprio espaço e tempo. O que provém destas redes, ditas virtuais, interroga obrigatoriamente o sentido tradicional da Polis, enquanto território delimitado, visível e secante nas suas produções ao que dela se esperava, nos edifícios, nas ruas, nas Universidades, etc.. A recombinação das matrizes, resultantes da invisibilidade física, empurra o sujeito para um lugar da dissolução simbólica do urbano, enquanto diversidade cultural.

Ora é justamente esta pauperização do simbólico e da sua ordem, que importa discutir, já que o sintoma maior do urbano na pós-modernidade. assenta justamente aí, ou seja, na sua alienação ao jogo de imagens a que a Polis de hoje se parece condenar. A convocação que proponho, resulta obviamente de um enfoque maioritariamente psicanalitico, embora longe de nele se esgotar. É que a questão do real, do simbólico e do imaginário, para parafrasear Lacan, encontra-se em todos os limites da produção cultural a que o humano se auto-propõe, em primeiro lugar, os lugares. Lugares da morte (os cemitérios), os lugares da vida, as cidades, sempre condenadas a uma outra-cena, como é visível nas toponímias que nomeiam uns e outros.

Mas o que se espera do espaço urbano, é que ele se mantenha como epicentro da ordem simbólica, ou seja, aquela que desaliena o sujeito do olhar do outro, pela acessibilidade ao saber que deconstroi a aproximação/distância face ao outro. O urbano é da ordem da morte da coisa, monumentalidade sacrificial ao simbólico, visível e invisível na construção como um mais além. Veja-se por exemplo as recentes declarações de Álvaro Siza, a propósito das Torres de Alcântara, aonde a Ponte mata, para fazer renascer o espaço arquitectónico.

Embora tal escuta não seja explícita, no dizer que se faz sobre o moderno, é aí mesmo que o sujeito se implica na ordem simbólica que face a ele existe e que também insiste e pré-existe. A emergente conflitual, já que a resultante é sempre conflitiva, expressava-se e expressa-se ainda na arquitectura, aonde inexoravelmente se interligam os registos simbólicos do mundo, da economia à política, às artes, ao urbano. A arquitectura, provavelmente a filha mais exemplar da cultura de tantas eras, articulava e configurava na modernidade, o espaço urbano e a nossa relação com aquele. Por outras palavras, entre o real (e insuportabilidade da necessidade de abrigo e alimento), o imaginário (lugar aonde a imagem do mundo e do outro se cruzam na alienação do eu que olha e é olhado e por aí reconhecido), e o simbólico (caesura que introduz o corte e a costura entre o Eu e o Outro), os limites formais e constitutivos do moderno e sua expressão arquitectónica, criaram um contexto suficientemente padronizado, em que o olhar sobre a cidade não se sustentava exclusivamente no vertex restrito e mercadológico.

Não me refiro obviamente ao mercado, ou à sua expressão societária, mas à reificação da mercadoria, ou seja do real, como deslize maior que infiltra no pós-moderno a cidade, enquanto sintoma de uma asfixia da própria linguagem urbana. É que, se concebermos a relação real/simbólico/imaginário como uma corrente trifásica, é o fusível queimado do imaginário que explicita a desertificação do urbano, progressivamente substituído pela cidade-espectáculo. Não me refiro tão só ou apenas à destruição física da Polis, ou seja o pior do pós-moderno, para o que bastaria um breve passeio dos Restauradores ao Marquês de Pombal, mas sobretudo do espaço público que ele representa ou deveria representar. É desse imaginário, fusível queimado na interligação entre o real e o simbólico, que encontramos hoje restos metonímicos, onde o sujeito urbano outrora se metaforizava. Obviamente que a deslocalização da relação especular Eu-Outro pela revolução tecnológica das comunicações, que por si mesma retirou o urbano da sua localização social, fragiliza a entidade física da metrópole.

Porém esta nova alteridade relacional sujeito-outro, sujeito-mundo, se em si mesma é subvertora da condição urbana, pela instântaniedade da interacção electrónica, não pode nem deve ser tomada como justificação mortalista para as questões que as cidades de hoje levantam.

Sei perfeitamente que esta proposta discursiva, se afasta em larga medida daquilo que Lyotard de um lado e Aldo Rossi do outro, designavam por pós-moderno, o que não é de admirar já que é de um outro ângulo que proponho a textualidade crítica.

Quanto a nós, a questão central é a transformação urbana enquanto relação libidinal com a pulsão escópica (pulsão do olhar), num progressivo deslize para a coisa. Ou seja, uma inversão da transformação do imaginário em simbólico, pela deglutição daquele pelo real.

Retomaria aqui o discurso de Jameson (1997) sobre o Hotel Bonaventure em Los Angeles. “O que pretende salientar”, afirma Jameson, “é a forma pela qual esse revestimento de vidro repele a cidade lá para fora, uma repulsa cuja analogia se encontra nos óculos de sol espelhados. De modo similar, o revestimento de vidro dota o Bonaventure de uma certa dissociação peculiar e deslocada da sua vizinhança; não se trata sequer de um exterior, na medida em que ao olhar-se para as paredes externas, não se vê o hotel, mas imagens distorcidas de tudo o que o circunda”.

Estes óculos de sol espelhados que se limitam a reflectir as imagens de tudo o que os circunda, ou seja, imagem pela imagem, encontram o seu ponto mais alto no sintoma maior do urbanismo pós-moderno, a saber, os shoppings-center. Expressão irónica, já que ir ao centro (ao Rossio, aos Restauradores), não é concerteza o mesmo que ir aos shoppings-center, embora estes sejam, tão só, um análogo do ovo de Colombo da estética do mercado. Autênticas cápsulas espaciais criadas para sustentar o espectáculo mercantil e a sua estética imanente, os shoppings reflectem a condição autista do real que submete o imaginário e deglute o simbólico na arquitectura puramente fotográfica high-tech, embrulho letal para a regulação do sentido da vida nas cidades de hoje, ou seja, uma relação não mediatizada à mercadoria. A legitimação deslocou-se do pensamento para o produto, pois só a aquisição parece legitimar o sujeito, que por ai mesmo, passa à categoria paradoxal de sujeito adquirido.

A progressiva extinção do “flaneur”, em que o gozo do perambular pelas ruas, dá progressivamente lugar ao andar robótico pelos corredores dos shoppings, numa hipnose letárgica do devaneio, extinguido pelo real mercadológico constitui-se, a meu ver, como o sintoma maior da cidade “pós-moderna”. A apologia do simulacro do simbólico, resgatado na forma de gadget, remete-nos, queira-se ou não, para uma anomia ética e estética.

Diga-se de passagem, que um dos sintomas psicopatológicos maior do nosso tempo, a saber a toxicodependência representa no mais elevado grau a questão sindromática pós-moderna. As drogas, são na sua essência o consumo, não sendo por acaso que os toxicodependentes se chamam, nos circuitos especializados, consumidores. Curiosos consumidores da única mercadoria que não necessita de publicidade, já que ela representa na sua espectacularidade o retorno do gozo e da dor ao real, como lugar mortifero do sujeito pensante e desejante.

Mas, e agora que se aproxima a época natalícia, aonde se encontra e constitui a cidadania? Nos shoppings como monumentalidade de um real submetido a si próprio, e que por isso condensa estranhamente a Ágora, o Templo e o Mercado.


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Poderá parecer aos que me escutam, que afinal o estreito muro em que me auto-propus como Humpty Dumpty me levou numa inglória tentativa de equilíbrio em olhar mais para um lado que para outro. Assumo parecer que assim seja. Porém, não me basta-não basta-denunciar as imposições estilisticas e mercadológicas, pseudo-ecléticos, mas vazias de conteúdo crítico, para encontrar uma linguagem para a permanência da Polis. Ou seja, é também necessário regressar à discussão do lugar tal como ele se constituiu; a saber como somatório de factos urbanos, ligados pela história, tradição e memória de um povo, somatório esse que se constitui como ordem simbólica da tecitura cosmopolita e simultâneamente idiossincrática, já que refazendo-se como continente e conteúdo, expressão major dos seus significados.

E aí a ressonância do lugar impõe-se, como consequência entre o moderno e o pós-moderno, o que não significa, longe disso, qualquer defesa de um urbanismo regional, paródia anti-globalizante e insustentável. O que achamos possível e desejável, em primeiro lugar como cidadãos, é uma aproximação resgatada do simbólico urbano, pela assimilação do existente e do contexto histórico em que se desenvolveu, aproximação essa que viabilize uma relação aberta com o contexto, integrando por isso uma arquitectura contemporânea na história, nas tradições locais e, obviamente, também nas condicionantes ambientais e climáticas.

O respeito pela cidade e pela sua história, deve ter como epicentro o homem como usufrutuário do lugar. Qualquer discussão sobre esta matéria deve levar em conta a essência do sentido de permanência e a existência do sujeito individual, contra-ponto crítico à massificação e à perda de sentido que atravessa o urbano e a fortiori a contemporaneidade.

Porém, e ainda como Humpty Dumpty no muro, não posso deixar de me interrogar como psicanalista sobre a frase agora mesmo escrita: “a essência do sentido da permanência”. O que realmente estou em vias de escotomizar, face ao efémero que me chega também pela História? E aí, Freud revisita-me, a partir de Novembro de 1915, nesse belo e notável texto sobre a transitoriedade. Perdoem-me a longa citação, mas torna-se imperativa no aqui e agora do discurso e da escrita. Afirmava Freud: “Não há muito tempo, dei um passeio na companhia de um amigo taciturno e de um jovem-poeta, embora já-famoso; percorrendo uma paisagem estival florescente. O poeta admirava a beleza da Natu­reza ao nosso redor, mas sem se alegrar com isso. Perturbava-o o pen­samento de que toda essa beleza estivesse destinada a perecer, que acabasse por morrer no Inverno, tal como toda a beleza humana, tudo o que de belo e sublime as pessoas tivessem criado ou pudessem criar. Tudo o que ele, de outra forma, teria amado ou admirado lhe parecia perder valor devido à fatal transitoriedade a que estava votado.

Sabemos que há dois movimentos psíquicos diferentes que podem originar-se na ideia de que tudo o que é belo e perfeito tende para a decadência. Um deles conduzirá ao tédio doloroso do jovem poeta; o outro, à revolta contra factos consumados: não, é impossível que todo este esplendor da Natureza e da arte, o nosso mundo sensível e o mun­do externo se dissolvam, de facto, no nada. Seria demasiado absurdo e presumido acreditar nisso. Essa magnificência deverá poder manter­-se de qualquer modo, eximir-se a todas as influências destrutivas.

Esta exigência de eternidade só por si é claramente uma conse­quência dos nossos desejos e não o resultado de uma reivindicação realista: aquilo que é doloroso também pode ser verdadeiro. Não pu­de negar a transitoriedade generalizada, nem circunscrever o belo e o perfeito a uma excepção. Mas contestei a visão pessimista do poeta de que a transitoriedade do belo implicasse a perda do seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor de transitoriedade corresponde a um valor de escassez no tempo. A limitação das possibi­lidades de usufruto aumenta a sua preciosidade. Considerei in­compreensível que a reflexão acerca da transitoriedade do belo nos estragasse a alegria que nos proporciona. No que toca à beleza da Na­tureza, ela ressurge no ano seguinte, após cada destruição operada pelo Inverno e, esse retorno, poderá ser descrito como eterno em rela­ção à duração da nossa vida. Da perspectiva da nossa própria vida, consideramos que a beleza do corpo e do rosto humanos desaparecem para sempre, mas esta fugacidade acrescenta-lhe um encanto re­novado. Se houver uma flor que apenas floresça durante uma única noite, a sua beleza não nos parece, por isso, menos excelente. Tão­-pouco sou capaz de concluir que a beleza e a perfeição da obra de arte e das criações intelectuais possam ser desvalorizadas devido à sua circunscrição temporal. Poderá vir a existir uma época em que os quadros e as estátuas que hoje admiramos surjam em ruínas, ou uma geração após a nossa que já não compreenda as obras dos nossos escri­tores e pensadores, ou até uma era geológica em que se extinga toda a vida animada existente na Terra; porém, o valor de tudo o que é belo e perfeito é apenas determinado pelo seu significado para a nossa vi­da emocional, não necessitando de nos sobreviver e sendo, por isso, in­dependente de uma duração temporal absoluta.”

Um pouco mais adiante, Freud, dá-se conta do seu fracasso argumentativo, face aos seus dois companheiros. “Deve ter sido a revolta contra o luto que os privou do prazer do belo”. Luto este que é de uma ordem enigmática, para parafrasear de novo o fundador da psicanálise, ou seja, porque é que nos é sempre penosa a separação dos objectos, "não desistir daqueles que se perdem, mesmo quando a sua substituíção se encontra viabilizada”.

A conversa com o poeta, afirma Freud, ocorreu no Verão anterior à 1ª. Grande Guerra Mundial. Guerra essa, para voltar a citar Freud que “nos despojou de muitas coisas que amáramos e nos mostrou a fragilidade de várias outras que tinhamos considerado duradouras”. Mas pergunta-se Freud “aqueles bens, agora perdidos, surgiram-nos realmente desvalorizados porque se revelaram tão ilusórios e frágeis”? A muitos de nós parece ser assim, mas eu penso de novo que erradamente”. (...) “Somente quando o luto estiver feito, ficará claro que a nossa grande estima pelos bens culturais não foi abalada pela sua fragilidade”.

É também esta relação entre o luto e o transitório, que se encontra subjacente a muito do discurso de hoje sobre a cidade. Ele é frequentemente da ordem da revolta contra o luto, mas também muitas vezes sustentáculo para a sua elaboração ou mesmo para a sua per-elaboração. Diga-se, que é esse o lugar em que me auto-proponho.

Sei perfeitamente também que Humpty Dumpty estava confiante de que se caisse do seu muro estreito, os soldados do Rei viriam ampará-lo na sua queda, coisa sobre a qual não posso ter a mesma certeza do famoso personagem de Carrol.

Mas sei também que os jogos de linguagem de Lewis Carrol, se fizeram essencialmente a partir das cartas de baralho, ou seja, seres sem espessura e, simultaneamente, figuras espelhadas e invertidas. E seria por aí mesmo que pretenderia terminar esta breve comunicação. O que me atormenta mais no pós-moderno, é o retorno ao sem espessura inerente a um real metomímíco, retorno esse que empurra o sujeito para uma àrea bi-dimensional entre ele e a mercadoria, como se um fosse impossível de conceber sem a outra. E por aí, os acontecimentos, a deriva urbana, não são mais procurados em profundidade, mas tão só promotores de um turismo hilariante e de consumo. Para retornar a Freud, encontrariamos aqui um transitório condenado ao breve.

A questão é então uma vez mais do espelho invertido, como nas figuras do baralho de cartas. Quem sou eu? O que se apropria do gadget ou aquele que por ele é apropriado?

Resposta a que só a razão crítica, e o retorno dos intelectuais à cena pública pode dar corpo. Mas não, à velha maneira messiânica figurada ou caricaturizada conforme se queira por Jean-Paul Sartre, enquanto figurino da relação antinómica entre os intelectuais e o Poder. Suponho que Atenas, a ex-libris por excelência da Polis, nos tem, uma vez mais muito que ensinar por aí. É que, sem cair do muro e sem a ilusão de ser apoiado pelos soldados do Rei, pudemos de alguma forma retornar à intervenção cívico-intelectual ateniense, enquanto dialogantes com o Poder, diálogo sem o qual, a questão de Humpty Dumpty sobre a apropriação do poder como apropriação da linguagem, fica irredutivelmente sem sentido.

Se até a indústria descobriu como transformar o esgoto em estrume, mal vai o mundo, se não somos capazes de encontrar caminhos novos face à pastiche do caos.

Bibliografia
Amaral Dias , C (1995) Ascensão e Queda dos Toxicoterapeutas, E. Fenda, Lisboa
Carrol, Lewis (2000) Alice do Outro Lado do Espelho, E. Relógio D’Água, Lisboa
Freud, S. (1915) Sobre a Transitoriedade - Ed. S.F. Br. Obr. Compl. Vol. XIV, pag. 345-35 D
Jameson, F. (1997) Pós-modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo. Ed. Ática

ADOPÇÃO E IDENTIDADE DE GÉNERO

Não escondo que as declarações de Luís Villas Boas, presidente da Comissão de Acompanhamento da lei de Adopção portuguesa, sobre a “infelicidade” de uma criança ser educada por homossexuais, “sejam dois ou um”, me pareceram tão previsíveis, como previsíveis foram as reacções que um sem número de associações tiveram, exigindo pura e simplesmente a sua demissão.

Os argumentos aduzidos pelos dois lados, pecaram por pôr de parte a única questão que deve interessar ao cientista, a saber, se há ou não evidência de efeitos psicopatológicos, desenvolvimentais ou na identidade de género de crianças criadas por pais (biológicos ou não) homossexuais.

Ora, é justamente aí que a questão se coloca, e é a partir daí que ela deve ser pensada. Existe com efeito uma abundante literatura cientifica que no mínimo põe em dúvida, afirmações tão radicais como as proferidas pelo Lic. Villas Boas.

Estudos empíricos como os de Bailey et al (1995), Flaks et al (1995), Green (1978) (1982) (1986), Hoeffer (1981), Huggins (1989), Kirkpatrick et al (1981), Koepke et al (1992), Patterson (1994), Turner et al (1990), entre muitos outros, não mostram diferenças significativas entre grupos de crianças criadas por pais homossexuais ou heterossexuais

Aliás, a American Psychological Association, publicou um artigo fundamental “Lesbian and Gay Parenting”, que mostra de forma concisa que não se encontram, na literatura cientifica revista, diferenças no que se refere aos aspectos mais marcantes para a criança. O ser cuidado por casais homossexuais, não teve impacto na aquisição da identidade de género, no comportamento sexual, no desenvolvimento pessoal ou mesmo nas relações interpessoais da criança, ou seja, na socialização.

Também não se encontraram repercussões nos processos de separação/individuação, nas avaliações psiquiátricas, na personalidade ou no desenvolvimento do julgamento moral.

Por outro lado, o relatório técnico da American Academy of Pediatrics, publicado na Pediatrics (Fevereiro de 2002), subordinada ao tema “Coparent or Second-Parent Adoption by Same-Sex Parents”, vai exactamente no mesmo sentido, ou seja que não há diferenças evidentes entre crianças que cresceram com um ou dois pais homossexuais das cuidadas por pais heterossexuais, seja do ponto de vista emocional, cognitivo, social ou da identidade de género. O que parece afectar o desenvolvimento infantil é a natureza das relações e das interacções familiares, o que é, obviamente uma questão outra. Talvez por isso, a mesma American Academy of Pediatrics, num outro texto, também de 2002, aceita não só a possibilidade de adopção por casais homossexuais, como recomenda aos pediatras que se familiarizem com a literatura cientifica publicada sobre o problema.

Parecem assim problemáticas, declarações como as que o Lic. Villas Boas proferiu, tais como, que uma criança adoptada por homossexuais , virá a ter interferências como a sua “sexualidade natural”, sendo portanto esta adopção “ um atentado ao direito das crianças”.

Paradoxalmente, comungo inteiramente da sua ideia que “não existe uma homossexualidade genética”, sabendo embora das controvérsias e dúvidas científicas, contidas em tal afirmação. O problema é que a questão das identificações imaginárias, subjacentes queira-se ou não ao discurso daquele psicólogo, não se traduz tão só ou fundamentalmente nas modelações sociais, a partir do discurso e das práticas visíveis. A identificação homossexual (tal como aliás a heterossexual) “obedece” a mecanismos complexos inconscientes, que nos levam a uma “escolha” que se localiza para além da bissexualidade psicológica fundante da espécie, encaminhando uma boa parte daquela, para uma monossexualidade estruturante da identidade de género.

Mas o que me afasta de Luís Villas Boas, não me aproxima, nem um pouco da procissão discursiva tipo marketing de baixo recorte, oriunda do outro lado da cena. Não é pedindo a demissão do Lic. Villas Boas, que aliás nem sequer me parece imbuído de má fé, mas tão só ingenuamente crente nalguns valores “civilizacionais”, que se instala em Portugal um discurso racional, moderno, sobre esta ou outras questões.

E já agora solicitaria ao nosso colega e amigo Doutor Eduardo Sá, um pouco mais de rigor na argumentação. Não basta, em questão tão delicada como esta, sermos contra ou a favor, neste caso a favor, ou abrir o discurso a significantes tão ambíguos como “carinho”.

O que precisamos mais do que nunca é de uma coisa, que não é da ordem do carinho. Devolver esta discussão aos seus fundamentos científicos e, por aí, retirar a qualquer Opus o exercício ideológico da militância, pela devolução da questão ao seu ponto crucial.

A ciência não se estabelece, nesta como em qualquer outra questão, sobre o senso comum, por muito bom senso que pareça ter, ela faz-se justamente para além daquele. O que aliás devia ser sabido, também, pela mediana dos media .

O problema está, uma vez mais, na escolha do significante mais fácil, mais convincente, porque mais confluente. Ou seja, aquele que só serve para português (não) ver.

Não se sacode a poeira de um País serôdio, a não ser pelo rigoroso exercício da razão. E mais não digo.

O REGISTO CIVIL AUTÁRQUICO

Há relativamente pouco tempo, um paciente discutia comigo o “fracasso” de uma relação amorosa. Casado há cerca de cinco anos, o matrimónio decorria conflituoso, amargo. A mulher não o “compreendia”. O que quer isso dizer, interrogo. Tratava-se, como é demasiado frequente, de uma disputa narcísica travada entre dois seres, obviamente diferentes. Porém, para o “meu” paciente, essa diferença consubstanciava-se na diferença de gostos, de hábitos, de estilos de vida.

Umas consultas adiante, uma luz outra inicia o esclarecimento do conflito. O “Zé”, chamemos-lhe assim, o que queria mesmo é que ela se transformasse à sua própria ideia do mundo, era-lhe quase insuportável a diferença.

Formulei-lhe então a sugestão de que o seu desejo era, tão só, uma forma de cadaverização do outro. Apropriação de uma identidade que, dessa forma, desaparecia para que ele e só ele existisse.

O paciente inicia uma reflexão sobre esta questão, para a qual propus um nome amódio. Em nome do amor, odiar o outro na sua radical alteridade.

Progressivamente deprime-se, pensa. Agora perante o seu próprio espelho, repensa o que é estar a dois. Ao Zé, que tem trinta e cinco anos, pergunto-lhe um dia: “Você passou trinta anos da sua vida solteiro. Acha mesmo que a parte da sua mente solteira de trinta anos passou realmente a casada, lá porque assinou um papel? Ou seja, a reposição do senso-comum , para além do senso-comum. Um bilhete de identidade diz hoje “solteiro”, amanhã “casado”. E a identidade do sujeito, quanto tempo precisa para casar?

Zé surpreende-se perante a evidência. Sobre esta continuamos ainda hoje a pensar, a transformar, a criar par e passo um projecto de mudança.

Trago hoje para aqui este exemplo tirado do meu dia a dia como psiquiatra, para o repor no país, na cena política de hoje.

A minha proposta reflexiva é da seguinte ordem. Democracia e partidos políticos casaram-se na Conservatória da Representatividade. Mas os discursos produzidos, durante e depois da campanha autárquica, levam-me a uma pergunta simples, elementar. Toleram os partidos a diferença democrática? Não serão “Zés” exigindo que a democracia seja igual a eles? Reflexo deles?

É que, para além das divergências que cada um pode ter sobre este ou aquele autarca, uma dimensão outra se impôs. A eleição de candidatos independentes mostrou que a democracia, tal como a mulher do Zé, existe para além dos partidos. Goste-se ou não. Goste o Zé ou não. A questão não é, portanto, tal como no casamento do meu paciente, remetível para a fala grossa, em que nalguns casais, voam pratos e copos.

A questão é se a democracia pode ser cadaverizada pelos partidos, fazendo daquela tão só um espelho do seu desejo, da sua vontade de poder. Ou ainda, se o casamento realmente se efectuou. É que se cinco anos na vida de um casal é realmente pouco, trinta e um anos de coabitação democrática é ainda menos para um povo, um país.

Aceitar o efeito da diferença é o que se espera de um casal. Queiram ou não os aparelhos partidários, a democracia existe, afirma-se para além deles.

O justicialismo apregoado, a ideia de um país mesquinho habitado por um povo-choldra, são também (não só, mas também) efeitos de um registo inconsciente de que os falantes partidários se constituíram como eco.

CARTA ABERTA AO SR. PRIMEIRO MINISTRO

Engenheiro José Sócrates. Excelência:


Escrevo-lhe enquanto cidadão participativo que se revê em muitas das suas medidas, reveladoras de coragem política. Escrevo-lhe também na condição de professor catedrático e director de uma instituição de ensino superior privada que, imagine, trabalha graciosamente em várias universidades públicas. Fazendo o que há de mais nobre na actividade universitária, a saber, criando novos doutores.

É este mesmo cidadão que se começou a interrogar durante o Verão sobre os espaços promocionais com que as universidades públicas passaram a brindar os portugueses. Colocando na imprensa anúncios com tal abundância e qualidade que, veja lá, cheguei a pensar em escrever ao Dr. Miguel Horta e Costa, enquanto amigo, para me esclarecer quanto custariam os anúncios promocionais de telemóveis, sobretudo os de nova geração.

Cheguei a pensar, imagine, dirigir-me a algumas empresas imobiliárias que, ciclicamente, nos propõe condomínios de luxo, tão somente para saber a relação entre investimento na publicidade e o aumento de potenciais compradores de casas tão magníficas.

A minha divagação foi tão longe que me recordei das Seashells, das Maldivas, ou mesmo, dos nossos Açores ou da bela ilha da Madeira. Quanto custaria em publicidade “vender” o sonho paradisíaco de palmeiras, praias e coqueiros ou águas transparentes e cálidas, ou mesmo, lagoas de sonho perdidas nas montanhas?

Saiba, Excelência, que não o fiz por uma única razão. Saber que o primeiro ministro de Portugal pouco pode fazer face à autonomia universitária. Embora soubesse também que a deriva dos dinheiros públicos destinados à universidade, ao abrigo de uma autonomia que roça nos gastos um quase autismo corporativo, provém fundamentalmente de uma via. A dos impostos que, quer eu, quer milhões de portugueses contribuintes entregam ao Estado. Com o único fito de melhor justiça, segurança social, educação e saúde. Dito de outra forma, minorar os desequilíbrios entre os portugueses.

Mas, Excelência, silenciei-me. Apesar de saber que o modelo de financiamento, das universidades públicas deveria ter alguém que lhe pusesse a mão, tanto mais quanto são poucos aqueles que dentro da corporação académica percebem o óbvio, a saber, que à sua volta existe um país.

Chegado este ponto, tenho de lhe confessar porque decidi agora escrever-lhe. É que, para além da montra publicitária em que num só dia e num só jornal instituições públicas gastaram cerca de quarenta e cinco mil euros em anúncios, essas mesmas instituições têm agora a “coragem” de falar de favorecimento pelo Estado das instituições de ensino superior privadas. O cálculo fácil das centenas de milhares, senão milhões de euros, delapidados num despautério público têm, ainda por cima, o contraponto do protesto. E ainda, o habitual “blá-blá” sobre a falta de investimentos destinados à investigação científica. Explique-nos, senhor primeiro ministro, como tal é possível?

Sei que Vª Excelência sabe, tão bem como eu, que este dinheiro gasto sem critério é de todos nós. Ao contrário daquele que provém das famílias que optaram livremente pelo ensino privado, pagando assim a instrução dos seus filhos e dos filhos dos outros por duas vias. A Escola e os impostos.

Excelência, sei da dificuldade que tem tido em implantar as medidas necessárias para reduzir as despesas públicas, tendo aí, embora, um pequeno/grande desacordo: a Ota e o T.G.V.
Certo que não será surdo ao princípio da realidade, envio-lhe os meus melhores cumprimentos.

BEIRA MAR/BEIRA MAL

Já lhe vi chamar assim: “Portugal, à beira mar plantado”. Já lhe chamei, por razões de facto e quiçá de direito, Portugal à beira mal plantado. Ambas metáforas próximas da realidade. Uma geográfica (beira mar), outra porque entristecendo-se com o que pior que se faz, se implanta, se planta.

Cogitava eu à volta disto e eis que me lembrei de um poema de Edgar Allan Poe. Mas perguntará o leitor, o que terá esse génio americano, nascido na Rua Hollis n.º 33, em Boston, a 19 de Janeiro de 1809, a ver connosco portugueses? Primeiro, como se sabe, a sua saúde era excepcionalmente má. Tal como, ao que se sabe e diz, a economia e o clima emocional lusitanos. Depois, porque a sua escrita no poema proposto ANNABEL LEE (em maiúsculas como Poe o quis), quer no título, quer no poema, também a nós, portugueses, convoca. Seja pela idealização do que fomos, a memória do passado umbilicalmente ligada às Descobertas e ao mito sebástico. Seja ainda, pela forma imaginária com que olhamos o futuro (a memória do futuro), ainda, e temo às vezes que sempre, ligada a D. Sebastião, morto em Alcácer Quibir. Morto, mas regressando ciclicamente a História de Portugal. Recentemente, através de Oliveira Salazar, mais recentemente ainda pelo anseio de salvadores da Pátria. Estes são sempre sebásticos. Com face, mas encobertos.

Mas vejamos então o poema de Edgar Allan Poe, através da magnífica tradução de Óscar Mendes (1965).

«Há muitos, muitos anos, existia
num reino à beira-mar, em que vivi,
uma donzela, de alta fidalguia,
chamada ANNABEL LEE.
Amava-me, e o seu sonho consistia
em ter-me sempre para si.

Eu era criança, ela era uma criança
no reino à beira-mar, em que vivi.
Mas tanto o nosso amor ultrapassava
o próprio amor, que até senti
os serafins celestes invejarem
a mim e a ANNABEL LEE.

Por isso mesmo, há muitos, muitos anos,
no reino à beira-mar, em que vivi,
gélido, de uma nuvem, veio um vento
matar ANNABEL LEE.
E seus nobres parentes se apressaram
em tirá-la de mim: encerrarem-na vi

num sepulcro bem junto ao mar, que chora
eternamente ali.

Foi inveja dos anjos: mais felizes
éramos nós aqui.
Sim, foi por isso (como todos sabem
no reino à beira-mar, em que a perdi)
que veio um vento, à noite, de uma nuvem
matar ANNABEL LEE.

Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi.
E nem anjos celestes nas alturas,
nem demónios dos mares abissais
jamais minha alma afastarão, jamais,
da bela ANNABEL LEE.

Pois, quando surge a lua, em meus sonhos flutua,
no luar, ANNABEL LEE.
E, quando se ergue a estrela, o seu fulgor revela
o olhar de ANNABEL LEE.
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto àquela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba, à beira-mar, no reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, ANNABEL LEE.»

Traduzindo a nossa proposta psico-política. A idealização do que fomos teve-nos “sempre para si”. Idealização essa, tão cega ao principio da realidade, que é mais forte “do que o tempo e a morte/do que a própria esperança em que a envolvi”. Por isso, alienados na memória do passado (mais forte que o tempo), por isso aprisionados numa memória do futuro, como eco do passado, repetição. A nossa teimosia, melhor dito, impotência face à mudança é mais forte “do que a própria esperança em que a envolvi”. Ora, como Esperança é Desejo mais tempo, sem ela não há nem desejo verdadeiro de mudança, nem tempo para a fazer. Por isso nos quedamos «à beira mar», soluçando “eternamente” por um Portugal de amanhã, que feitas as contas é o Portugal de ontem.

Com ou sem Ota. Com ou sem TGV.

Pseudónimo: DGEA

Herdeiro como sou do “Der Deutche Gedänk” (o pensamento alemão), filio a minha cogitação em Kant, na Escola de Magdeburgo, em Hegel, Feuerbach, em Heidegger, mas também em Nietzsche, ou em Karl Krauss, Musil, Holderlin, Rilke, e sobretudo em Sigmund Freud.

Daí o me reconhecer no método, no rigor da perplexidade, na dúvida sistematicamente enunciada. Por aí ainda me reconheço em Clausewitz e no classicismo da sua obra magistral “Da Guerra” (1832), que só os tontos pensam estar ultrapassada. Mas também me reconheço e, sobretudo, me conheço na notável obra “A ideia de Europa”, de George Steiner, dada, recentemente a público, pela Gradiva, com prefácio insinuante, mas cauteloso de José Manuel Durão Barroso.

Neste último me reconheço europeu na “unidade da diversidade”. Nele me revejo na frase “Quem diz cultura, diz liberdade e diz diferença”.

Reconheço-me menos, Durão Barroso, quando José Manuel, silogisticamente aponta a letra e o discurso de Steiner, como “desencanto” e o liga aos “resultados negativos” dos referendos sobre a Constituição Europeia.

Tanto mais quanto, para Steiner, a Europa é sobretudo feita de três coisas. Os “cafés”, desde os de Lisboa de Fernando Pessoa, aos de Odessa, Palermo, aos de Copenhaga, pelos passeios quase bizarros de Kierkegaard, aos de Paris de Beaudelaire, Danton e Robespierre (o Procope). A Europa é para Steiner “um mapeamento dos cafés”. Não posso estar mais de acordo. Em segundo lugar, a Europa para Steiner, foi percorrida a pé. A começar pelos promeneurs, pelos flaneurs e, sobretudo, a refundar na retórica grega, pelos peripatéticos. Literalmente os que percorriam a pé e se faziam percorrer de polis em polis. Ontem (hoje/amanhã), refeitos por Kant em Königsberg, por Charles Péguy, etc. Em terceiro lugar, a Europa é um lugar toponímico para o autor da “A Ideia de Europa”. Milão, Weimar, Praga, Lisboa, evocam pelo nome da rua a Europa. Sempre ela, como espaço “sombrio e soberano”, onde se faz o “lugar da memória”.

Porém, como afirma Steiner, não há nem cafés, nem sinos de aldeia (a Europa a pé), nem toponímia nos E.U.A. Já que os cafés trazem consigo o problema americano de ninguém ali poder escrever fenomenologia num café. Veja-se Sartre e o café Deux Margots. Ainda que de intelectual “messiânico” não tenhamos nada, já que nos revemos mais na postura ateniense dos intelectuais como conselheiros de poder. Mas, na América, para parafrasear o autor, “as bebidas têm de ser renovadas, se o cliente continuar a ser desejado”. Steiner também nos diz sobre a vantagem geológica da Europa. Nesta não existiam os “grandes bosques” do Pacífico, o Alasca e muito menos a rocha de Ayer, na dimensão australiana, rocha essa “quase irrelevante para o Homem”. A terceira questão steineriana é a toponímia. Em Paris, as ruas convocam pelo seu nome Descartes, Comte, Racine, Molière. Mozart, Adorno, dão nome a ruas alemãs ou em Londres ao movimento de Bloombury, a cientistas, filósofos, etc.

A América não tem cafés, mas tem os pântanos da Florida ou o Grand Canyon. Tem também as ruas simplesmente numeradas, já que “os automóveis não têm tempo de considerar uma Rue Nerval ou um Largo Copennicus”.

Mas são apenas (América e Europa) diferentes. Nem piores, nem melhores.

Sugeriria para terminar que nos guiássemos por três coisas. O rigor do pensamento alemão, a elegância platónica/aristotélica europeia figurada nos “ci-devant” da revolução francesa, e a velocidade de execução inaugurada por Ford, com a metaforização do automóvel, como rapidez de decisão. Por isso o meu pseudónimo é DGEA. Pensamento alemão (DG)+Europa+América.

Somar o melhor de três pensamentos. Por isso recomendo ao leitor a compra da obra de Steiner. No Natal ofereça-o a todos os seus amigos. Por favor, obrigado.