Thursday, November 09, 2006

DEMOCRACIA SEM RISCO

O actual estado de coisas em matéria securitária questiona, queiramos ou não, a Europa das liberdades, a Europa da Revolução Francesa.

Dir-se-á que, durante a guerra fria, dada a sua própria natureza, os estados, nomeadamente a ex – URSS e os E.U.A. evoluíram de tal forma que o chamado interesse nacional se confundiu com potência militar. Mas aí era a segurança externa que interessava ao mundo dividido pela cortina de ferro.

Progressivamente, o conceito de segurança interna foi ocupando mais e mais os estados, sobretudo via problemas cada vez mais inter-conectados. Refiro-me, por exemplo, à emigração, ao terrorismo e ao tráfico de drogas.

Porém, neste contexto crescente securitário, o 11 de Setembro acelerou a construção de programas de controlo e de vigilância generalizados.

Alguns exemplos pós – 11 de Setembro são, de facto, inquietantes:

- a 25 de Outubro de 2001, os E.U.A. adoptaram o Patriot Act;

- no verão de 2005, a polícia italiana foi autorizada a escutar pessoas durante mais de três meses, desde que houvesse suspeita de ligação a práticas terroristas;

- em Janeiro de 2006, na Baviera, foram autorizadas escutas e controlos de e-mails, ainda que a polícia não dispusesse de nenhuma suspeita concreta;

- em Março de 2006, uma directiva europeia obriga os estados membros a conservar, até dois anos, informações sobre comunicações telefónicas e Internet, nos respectivos países;

- em Outubro de 2006, assinou-se um acordo da U.E. com os E.U.A., de forma a transmitir os dados pessoais dos passageiros aéreos;

- em Novembro de 2006, 4,2 milhões de câmaras de vigilância estão em actividade no Reino Unido, ou seja, uma câmara por catorze habitantes.

Esta omnipresença e banalização do controlo securitário, de que o “Le Monde” de 6 de Novembro dá conta, parece, no entanto, mais e mais normalizado, acompanhado de mudanças cognitivas nas nossas sociedades. De facto, a opinião pública não reage e, pelo contrário, pode até exigir a auto-proclamação da segurança.

Na Bélgica, por exemplo, os habitantes dos bairros residenciais reclamam o direito de interrogar alguém que achem suspeito ou de chamar consequentemente a polícia. Ou seja, exigimos um crescendo de segurança e simultaneamente reivindicamos uma profunda ligação às nossas liberdades.

Não se trata mais de uma sociedade de controlo, mas de auto-controlo, em que a democracia fica parodiada pelas alternâncias democráticas eleitorais.

O drama está na vitória do terrorismo. Hoje, o Estado pode desqualificar os direitos dos cidadãos e continuar a ser considerado democrático. A redução progressiva e consentida das liberdades individuais, em nome da luta anti-terrorista, apenas cria a fantasia de uma democracia sem risco que tem como pano de fundo a Al-Quaeda e os seus seguidores.

O SUCESSO DA ILITERACIA


Num mundo em que a iliteracia se travestiu de alfabetização, vale a pena reflectir sobre as consequências que tal facto produz a nível planetário. Sobretudo aqui, na Europa, em que os teatros tentam desesperadamente sobreviver, as companhias de bailado são encerradas, enquanto os jovens ouvem o seu próprio vazio, disfarçado de sonoridades menores.

“Esta” Europa, que produziu Camões, Pessoa, Goethe, Dante, Elliot, Freud e tantos outros, vê-se hoje a braços com o esvaziamento identitário resultante da homogeneização de culturas, de saberes e de pseudo-saberes que invadem o Velho Continente.

Refiro-me em particular à Europa, posto que ela é o berço civilizacional que viabilizou outras culturas, outras matrizes colectivas, sobretudo no Novo Mundo.

Aqui, como lá, assistimos, de um lado, à impressionante expansão do que designaríamos por alta ciência e também, por que não dizê-lo, da alta cultura.

Por outro lado, verificamos a proliferação da chamada literatura light, que vende às dezenas de milhar, e à impostura que se propõe a explicar os mistérios do mundo, das culturas à religião, da astrologia, claramente correspondendo à manutenção de um nível pré-científico no século XXI. Mesmo sem um planeta (Plutão), a astrologia enche gabinetes, dá origem a horóscopos, etc.

É neste mundo que a obra de Dan Brown campeia e faz sucesso. Segundo a sua editora em Portugal, a Bertrand, um em cada dez portugueses já leu o tristemente famoso escritor norte-americano. Ou seja, foram utilizadas 777 toneladas de papel que juntas têm 91 vezes o comprimento da Torre Eiffel, além de alinhados poderem cobrir a distância que separa Lisboa do Algarve. E, no entanto, a obra de Dan Brown não passa de pastiche intelectual, cozinhada em pseudo-saberes históricos, em relações fantásticas, por sua vez engendrando enredos de baixo nível.

O pior, para além da atitude acrítica que move a imensa maioria dos leitores de Brown, é a impressionante divulgação a nível planetário da sua obra. Por exemplo, o Código da Vinci já vendeu mais de 40 milhões de exemplares, dos quais cerca de meio milhão no nosso país. Ombreando com as telenovelas de segunda e o número incomensurável de programas sobre futebol, ultrajantes pela fala vazia produzida, a obra de Dan Brown é, no entanto, mais perigosa.

A sua pretensão explicativa não só põe em questão os fundamentos mítico-simbólicos da nossa cultura, como fornece pseudo-explicações ao alcance de todos.

Talvez um dia não precise de voltar a escrever sobre isto, embora saiba que esse dia, se vier, muito tardará.

VIEIRA E MATEUS

1 – Existem pessoas que nunca estão satisfeitas. Apesar da presença notável da selecção nacional no último mundial, ou quiçá do triunfo que representa para o nosso futebol a presença de três equipas nacionais (Porto, Sporting e Benfica) no mais prestigiado campeonato de futebol. Imaginem que exigem transparência e surpreendem-se com as escutas telefónicas feitas a Luís Filipe Vieira e a outros dirigentes desportivos. Perguntam-se, conforme a pertença clubística, será isto real, será isto possível?

Independentemente de ser visceralmente contra o uso e abuso de escutas telefónicas, revolto-me contra a ideia de que tais factos se passaram realmente. Se um homem profere, via telefónica, palavras de amor à sua amada, o que ouve ela realmente? Não a voz ardente do seu amado, embora ela pense que assim seja. Mas tão somente uma reconstituição, através do telefone, aos seus ouvidos de uma vibração do ar. Todo o telefonema é, pois, uma simulação. Por isso, as escutas telefónicas a Filipe Vieira são apenas simulacros e nada mais.

Mas, ainda que Vieira ou Valentim Loureiro estivessem face a face, a apenas algumas dezenas de centímetros de distância, o que ouviriam eles? Não foram os seus ouvidos que ouviram as palavras. O que um ouvido faz é registar as mudanças de pressão pela acção do estribo e dos ossos da bigorna. Enfim, simulacro outra vez.

Sou, pois, firmemente contra acusações que se baseiem tão-somente em realidades virtuais. O futebol português não merece isto, nós somos mesmo transparentes e cheios de fair play. Aliás, se o leitor bebericar um café, tomar banho no mar ou apreciar o gosto de um martini, tem de se perguntar, isto é real?

2 – O caso Mateus divide os portugueses, já que Fiúza é mesmo fiúza e não desiste.

Recomendaríamos a ambas as partes a leitura do evangelho homónimo (o Evangelho segundo S. Mateus). “Por que olhas o cisco no olho do teu irmão e não vês a trave no teu? Como ousas dizer ao teu irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu próprio tens uma trave no teu. Hipócrita, retira primeiro a trave do teu olho e só então cuidarás de retirar o cisco do olho do teu irmão.”.

Até para a semana.

LOGOS


Gostei particularmente da intervenção do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, a propósito da conferência universitária de Bento XVI, ou melhor dizendo, do Prof. Ratzinger, agora Papa.

A defesa clara da liberdade de expressão é crucial no momento preciso em que a essência da democracia (a defesa de liberdades, direitos e garantias) está mais e mais comprometida pelos processos securitários, gerados pelas sociedades ocidentais como resposta ao terrorismo internacional, nomeadamente islâmico.

Gostei também das declarações do chefe do governo espanhol, Rodriguez Zapatero, sobre as palavras do Papa. Tanto mais quanto Zapatero “não vai à missa” com a Igreja Católica de Espanha e nem sequer foi à missa proferida pelo Papa no território hispânico. “Este” primeiro-ministro, resolutamente laico, não deixou de afirmar “o seu apoio e plena compreensão ao Papa”. A 21 de Setembro, em Madrid, Zapatero declarou que “o Papa foi muito claro na explicação da sua intervenção” e que em momento algum as palavras papais puseram em causa a fé islâmica e os seus crentes.

De facto, o que Bento XVI nos propôs foi uma relação entre os filhos “muitas vezes desiludidos”, para parafrasear Steiner, de Atenas e Jerusalém. Ou seja, e por outras palavras, uma relação privilegiada entre o pensamento bíblico e o logos helénico. Esta convocação da Razão, que já lhe valeu ameaças dos radicais islâmicos contra a sua própria vida, é a única compatível com a Europa saída do Iluminismo. Face àquela, nada, nem mesmo nada, poderá virar-se contra a razão e a racionalidade inerentes aos nossos sistemas sociais.

O Comissário europeu para a Segurança, Liberdade e Justiça, Franco Frattini, afirmou (“apelo aos estados membros para levarem a sério as ameaças contra o Papa”). Frattini afirmou ainda que a Europa se encontra sob duas ameaças terroristas. Uma, dirigida aos Estados e aos seus cidadãos e outra, dirigida ao Papa e ao Vaticano, algo confirmado, aliás, por várias declarações oriundas de grupos extremistas islâmicos, convocando a intenção de atacar o território do Vaticano e o próprio Bento XVI.

Mas será que uma pressão exógena à nossa cultura nos poderá fazer vacilar? Ou, pelo contrário, devemos ater-nos às palavras de Kant no prefácio à 1ª edição da “Crítica da Razão Pura” (1781)

Afirmou o famoso filósofo (“A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem de se submeter. A religião pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.”).

NO PAÍS DO VENERANDO

Num país quase sempre previsível, saúda-se a imprevisibilidade cardinalícia a propósito do aborto.

O que surpreendeu Portugal (incluindo o Bloco de Esquerda) foi a forma e o modo como o Cardeal D. José Policarpo se pronunciou, que não fundamentalmente o conteúdo das suas afirmações.

Estas, se bem que longe do dislate que se propagou na Igreja Católica nacional, aquando do último referendo sobre o aborto, não trouxeram nada de novo, a não ser um quase propósito de neutralidade eclesiástica sobre a interrupção voluntária da gravidez.

D. José Policarpo afastou-se assim do discurso neo-delirante produzido por uma parte da igreja aquando do processo referendário. Só isso, no aqui e agora nacional, é já da ordem do surpreendente.

Já a oposição de alguns movimentos ditos “pró-vida”, apesar da retórica argumentativa, apenas reproduzem, num país à beira-mal plantado, o tom de capelinha, ainda que retocado de um pseudo-saber, soi-disant, rigoroso.

Pior, muito pior, é a colagem do centro-direita ao discurso acima proposto. A direita portuguesa não fez ainda o luto pelo imaginário salazarista, evocação sombria de procissões e de um Estado calcorreado por estradas minúsculas e humildes, unindo aldeias caiadas pelas côdeas de pão que alimentavam “o bom povo português”.

A direita portuguesa é contra o aborto, como é contra a união de homossexuais ou a liberalização das drogas, ou ainda, contra a eutanásia. Desta forma, entrega à esquerda, se não mesmo à extrema esquerda, o que se designa por causas fracturantes, nomeação tosca para a modernidade, hoje.

Se assim não fosse, como entenderíamos o Partido Liberal Holandês, claramente conotado com o centro-direita no país das tulipas e onde pugnou e conseguiu o enquadramento legal para aquelas práticas ditas “escandalosas”. Seja a eutanásia, o aborto, a união de homossexuais ou a liberalização do consumo de drogas leves.

O problema, pois, não está em ser de esquerda ou de direita, mas no olhar que se lança sobre a contemporaneidade.

UNIVERSIDADE

É sempre bom saber o que as coisas querem dizer. Ajuda-nos a reflectir sobre a intencionalidade das palavras que as designam. Por exemplo, “Universidade”; reza o dicionário Houaiss (2003) que aquela diz respeito, em primeiro lugar, a uma qualidade ou condição. Esta é da ordem do universal. Assim sendo, a universidade é a instituição que nos abre à complexidade do que nos rodeia, ou seja, às leituras do Universo.

Por outro lado, uma universidade é uma instituição de ensino e pesquisa, constituída por um conjunto de faculdades e escolas destinadas a promover a formação profissional e científica de pessoal de nível superior e realizar pesquisa teórica e prática nas principais áreas do saber humanístico, tecnológico e artístico e a divulgação dos seus resultados à comunidade científica mais ampla (Houaiss 2003).

“Universitas” é o étimo de universidade e reenvia-nos a universalidade, totalidade.

Serve esta incursão pelo dicionário para enquadrar as recentes práticas de estudantes universitários, as quais, para além do velho e estafado discurso sobre propinas, etc., se fazem agora também em nome de uma exigência de emprego para os licenciados pelas universidades portuguesas.

Nem universidade, nem universitário, ou seja, aquele que pertence à universidade (professor ou discente) trazem consigo uma reivindicação estranha ao espírito ou à qualidade universitária, isto é, o seu universitarismo.

Perguntar-se-á, então, o que move alguns estudantes universitários, exclusivamente oriundos das instituições de ensino superior públicas, para, despudoradamente, exigirem às universidades aquilo que a elas não compete. Esta pura demagogia, este neo-populismo que campeia em afirmações destituídas de qualquer espírito crítico, parecem, no entanto, acolher alguma recepção pública.

E, no entanto, mesmo que o problema fosse enquadrável na formação superior, única responsabilidade que a instituição universitária tem para com os seus discentes, uma evidência joga contra o patuá alarmista sobre a empregabilidade dos licenciados.

Veja-se a este propósito as declarações de Francisco Madelino, presidente do I.E.F.P.. Naquelas, é visível não só a necessidade de uma readaptação dos jovens licenciados ao mercado de emprego, como também números esclarecedores. Efectivamente, os que dispõem de maiores habilitações são os que têm mais hipóteses de encontrar emprego. Aos 14 meses, média geral do tempo de desemprego, contrapõem-se os 8 meses que os licenciados demoram a encontrar trabalho. Aliás, o nível de empregabilidade naqueles que possuem instrução superior aumentou 3,7%, número que nos obriga a reflectir. Por isso, Madelino é incisivo nas suas declarações (“Não há licenciados em excesso no país”).

Então, não só as manifestações carecem de finalidade nos intra-muros das universidades, como se revelam incongruentes com a realidade.

Uma universidade é um lugar onde se pesquisa, ensina e se aprende. Não é, nem nunca poderá ser, uma bolsa de emprego para os que nela estudaram. O resto resulta de uma pseudo-ingenuidade que só serve para criar ruído no universo da razão.