Tuesday, December 20, 2005

BEIRA MAR/BEIRA MAL

Já lhe vi chamar assim: “Portugal, à beira mar plantado”. Já lhe chamei, por razões de facto e quiçá de direito, Portugal à beira mal plantado. Ambas metáforas próximas da realidade. Uma geográfica (beira mar), outra porque entristecendo-se com o que pior que se faz, se implanta, se planta.

Cogitava eu à volta disto e eis que me lembrei de um poema de Edgar Allan Poe. Mas perguntará o leitor, o que terá esse génio americano, nascido na Rua Hollis n.º 33, em Boston, a 19 de Janeiro de 1809, a ver connosco portugueses? Primeiro, como se sabe, a sua saúde era excepcionalmente má. Tal como, ao que se sabe e diz, a economia e o clima emocional lusitanos. Depois, porque a sua escrita no poema proposto ANNABEL LEE (em maiúsculas como Poe o quis), quer no título, quer no poema, também a nós, portugueses, convoca. Seja pela idealização do que fomos, a memória do passado umbilicalmente ligada às Descobertas e ao mito sebástico. Seja ainda, pela forma imaginária com que olhamos o futuro (a memória do futuro), ainda, e temo às vezes que sempre, ligada a D. Sebastião, morto em Alcácer Quibir. Morto, mas regressando ciclicamente a História de Portugal. Recentemente, através de Oliveira Salazar, mais recentemente ainda pelo anseio de salvadores da Pátria. Estes são sempre sebásticos. Com face, mas encobertos.

Mas vejamos então o poema de Edgar Allan Poe, através da magnífica tradução de Óscar Mendes (1965).

«Há muitos, muitos anos, existia
num reino à beira-mar, em que vivi,
uma donzela, de alta fidalguia,
chamada ANNABEL LEE.
Amava-me, e o seu sonho consistia
em ter-me sempre para si.

Eu era criança, ela era uma criança
no reino à beira-mar, em que vivi.
Mas tanto o nosso amor ultrapassava
o próprio amor, que até senti
os serafins celestes invejarem
a mim e a ANNABEL LEE.

Por isso mesmo, há muitos, muitos anos,
no reino à beira-mar, em que vivi,
gélido, de uma nuvem, veio um vento
matar ANNABEL LEE.
E seus nobres parentes se apressaram
em tirá-la de mim: encerrarem-na vi

num sepulcro bem junto ao mar, que chora
eternamente ali.

Foi inveja dos anjos: mais felizes
éramos nós aqui.
Sim, foi por isso (como todos sabem
no reino à beira-mar, em que a perdi)
que veio um vento, à noite, de uma nuvem
matar ANNABEL LEE.

Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi.
E nem anjos celestes nas alturas,
nem demónios dos mares abissais
jamais minha alma afastarão, jamais,
da bela ANNABEL LEE.

Pois, quando surge a lua, em meus sonhos flutua,
no luar, ANNABEL LEE.
E, quando se ergue a estrela, o seu fulgor revela
o olhar de ANNABEL LEE.
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto àquela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba, à beira-mar, no reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, ANNABEL LEE.»

Traduzindo a nossa proposta psico-política. A idealização do que fomos teve-nos “sempre para si”. Idealização essa, tão cega ao principio da realidade, que é mais forte “do que o tempo e a morte/do que a própria esperança em que a envolvi”. Por isso, alienados na memória do passado (mais forte que o tempo), por isso aprisionados numa memória do futuro, como eco do passado, repetição. A nossa teimosia, melhor dito, impotência face à mudança é mais forte “do que a própria esperança em que a envolvi”. Ora, como Esperança é Desejo mais tempo, sem ela não há nem desejo verdadeiro de mudança, nem tempo para a fazer. Por isso nos quedamos «à beira mar», soluçando “eternamente” por um Portugal de amanhã, que feitas as contas é o Portugal de ontem.

Com ou sem Ota. Com ou sem TGV.

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