Tuesday, December 20, 2005

O REGISTO CIVIL AUTÁRQUICO

Há relativamente pouco tempo, um paciente discutia comigo o “fracasso” de uma relação amorosa. Casado há cerca de cinco anos, o matrimónio decorria conflituoso, amargo. A mulher não o “compreendia”. O que quer isso dizer, interrogo. Tratava-se, como é demasiado frequente, de uma disputa narcísica travada entre dois seres, obviamente diferentes. Porém, para o “meu” paciente, essa diferença consubstanciava-se na diferença de gostos, de hábitos, de estilos de vida.

Umas consultas adiante, uma luz outra inicia o esclarecimento do conflito. O “Zé”, chamemos-lhe assim, o que queria mesmo é que ela se transformasse à sua própria ideia do mundo, era-lhe quase insuportável a diferença.

Formulei-lhe então a sugestão de que o seu desejo era, tão só, uma forma de cadaverização do outro. Apropriação de uma identidade que, dessa forma, desaparecia para que ele e só ele existisse.

O paciente inicia uma reflexão sobre esta questão, para a qual propus um nome amódio. Em nome do amor, odiar o outro na sua radical alteridade.

Progressivamente deprime-se, pensa. Agora perante o seu próprio espelho, repensa o que é estar a dois. Ao Zé, que tem trinta e cinco anos, pergunto-lhe um dia: “Você passou trinta anos da sua vida solteiro. Acha mesmo que a parte da sua mente solteira de trinta anos passou realmente a casada, lá porque assinou um papel? Ou seja, a reposição do senso-comum , para além do senso-comum. Um bilhete de identidade diz hoje “solteiro”, amanhã “casado”. E a identidade do sujeito, quanto tempo precisa para casar?

Zé surpreende-se perante a evidência. Sobre esta continuamos ainda hoje a pensar, a transformar, a criar par e passo um projecto de mudança.

Trago hoje para aqui este exemplo tirado do meu dia a dia como psiquiatra, para o repor no país, na cena política de hoje.

A minha proposta reflexiva é da seguinte ordem. Democracia e partidos políticos casaram-se na Conservatória da Representatividade. Mas os discursos produzidos, durante e depois da campanha autárquica, levam-me a uma pergunta simples, elementar. Toleram os partidos a diferença democrática? Não serão “Zés” exigindo que a democracia seja igual a eles? Reflexo deles?

É que, para além das divergências que cada um pode ter sobre este ou aquele autarca, uma dimensão outra se impôs. A eleição de candidatos independentes mostrou que a democracia, tal como a mulher do Zé, existe para além dos partidos. Goste-se ou não. Goste o Zé ou não. A questão não é, portanto, tal como no casamento do meu paciente, remetível para a fala grossa, em que nalguns casais, voam pratos e copos.

A questão é se a democracia pode ser cadaverizada pelos partidos, fazendo daquela tão só um espelho do seu desejo, da sua vontade de poder. Ou ainda, se o casamento realmente se efectuou. É que se cinco anos na vida de um casal é realmente pouco, trinta e um anos de coabitação democrática é ainda menos para um povo, um país.

Aceitar o efeito da diferença é o que se espera de um casal. Queiram ou não os aparelhos partidários, a democracia existe, afirma-se para além deles.

O justicialismo apregoado, a ideia de um país mesquinho habitado por um povo-choldra, são também (não só, mas também) efeitos de um registo inconsciente de que os falantes partidários se constituíram como eco.

No comments: